Raw e o tabu feminino
Por Aline Reis
Vegetariana e caloura na faculdade de veterinária, Justine (Garance Marillier) é obrigada a comer carne crua durante o trote. A partir daí, a garota começa a sentir um desejo avassalador por comer carne, principalmente humana. E com essa premissa a diretora francesa Julia Ducournau nos apresenta Raw (Grave - 2016), utilizando da metáfora para explorar questões como a puberdade feminina e o afloramento dos desejos sexuais.
![]() |
Foto: Reprodução |
Justine é uma adolescente de 16 anos que acabou de entrar na faculdade. Até então uma menina doce e virginal, pela primeira vez ela tem a oportunidade de ser dona de si mesma, longe de qualquer cobrança imposta por seus pais, mas ainda sim sofrendo por todas as expectativas que são colocadas sobre ela. Incentivada por sua irmã, Alexia (Ella Rumpf) - que frequenta a mesma faculdade de veterinária que Justine - a não pular qualquer etapa dessa nova fase - desde o trote até as festas - Justine começa a descobrir quem realmente é, passando pelas inevitáveis mudanças que a transformarão de criança para mulher.
Como uma grande metáfora, Raw faz com que o telespectador se sinta tão angustiado quanto Justine ao não compreender tamanhas mudanças. Todo o momento de transformação pelo qual a garota passa reverbera em seu comportamento e em seu relacionamento com os colegas e família. Inicialmente, ela tenta a todo o custo reprimir tamanhos impulsos, já que até então comer qualquer tipo de carne passava longe do aceitável na realidade em que vivia, mas a transformação aconteceria de qualquer forma, mesmo que ela, sua mãe - que ficava apavorada com a ideia de que a filha comesse carne - ou qualquer outro personagem da trama quisesse evitar, tudo isso simbolizando o receio em relação aos desejos de uma garota que está passando pela fase da puberdade. Além disso, é possível destacar um outro aspecto trazido de forma quase satírica pelo filme, ao levantar a questão de como a mulher é considerada uma espécie de predadora ao apresentar qualquer tipo de desejo sexual, já que Justine sente a vontade literal de comer seu colega de quarto.
Com a inserção na faculdade e a mudança completa de ambiente Justine precisa mudar, mesmo que isso pareça prejudicial. Na trama, sua irmã já aceitou aquela nova realidade e abraçou-a, aprendendo a lidar com ela sem que isso a impedisse de viver uma vida “normal”. É igualmente doloroso para Justine tanto desfazer-se das amarras da pessoa que era no passado quanto aceitar a nova pessoa na qual ela se transformava, já que tudo era um processo de aprendizado, até que ela conseguisse atingir o estágio de sua irmã mais velha.
Mesmo sem a metáfora o filme se sustenta de forma maravilhosa, dosando muito bem a quantidade de cenas mais gore sem perder o ritmo, com um enredo intenso e interessante. A utilização da trilha sonora marcante e em pontos específicos cria cenas memoráveis - como a sequência final, um dos pontos altos da obra e que faz valer toda a experiência.
“Um animal que provou carne humana não é seguro”, como diz o pai de Justine, em uma das cenas do longa. Uma vez que a vida adulta chega, nada consegue impedi-la. Raw utiliza da ficção para retratar uma realidade inevitável, pelas mãos de uma diretora promissora que não utiliza de excessos para contar, de forma mais simples do que parece, a história de uma adolescente, e assim, a história de todas nós.
Nenhum comentário
Postar um comentário