A morte dos rios paulistanos
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Rio Pinheiros antes e depois da retificação. Reprodução: Foto 1. Foto 2 |
São Paulo de Piratininga. Esse foi o primeiro nome da vila que se tornaria a cidade mais populosa da América. Em 1554, padres construíram um colégio jesuíta no alto de uma colina entre dois rios. E assim começou a história de São Paulo, e também, o início do fim dos rios paulistanos.
Os dois rios que passavam, e ainda passam no local que hoje é conhecido como Pateo do Collegio, seriam os rios Anhangabaú e Tamanduateí. No início do desenvolvimento da vila, os rios era fundamentais. Ambos dão conexão ao Tietê, que dá acesso a uma grande parcela do interior do estado de São Paulo.
Representação de como seria o Rio Tamanduateí com o colégio jesuíta ao fundo. Artista: Paulo de Carvalho |
A cidade começou a se desenvolver ao redor da construção jesuíta. Comércios, casas, e até mesmo um importante porto eram localizados na região.
Até o momento, os rios tornavam-se parte viva e essencial para a vila que começava a virar cidade. A expansão definitiva de São Paulo foi com a expansão cafeeira para o interior do estado. Vários investimentos começaram a ser feitos na região, como a ferrovia controlada pelos ingleses, a São Paulo Railway, que ligava o interior do estado ao Porto de Santos, construída na segunda metade do século XIX. O trajeto da ferrovia quando chega em São Paulo foi feito utilizando-se da área da planície do rio Tamanduateí.
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Anúncio em jornal da construção da São Paulo Railway Company. Fonte |
Com a construção da ferrovia, o uso do transporte hidroviário caiu em desuso. A cidade crescia mais e mais, e os rios, que antes eram artérias de São Paulo, tornaram-se obstáculos. Um dos símbolos ostentados pela elite paulistana durante o início da modernização da cidade, era o Viaduto do Chá. O Viaduto que hoje passa pelo Vale do Anhangabaú foi construído para ligar partes da cidade que eram divididas pelo rio Anhangabaú. A construção, até 1887, só podia ser utilizada perante o pagamento de um pedágio. Com estruturas importadas da Alemanha, a estrutura conectou o centro da cidade aos novos bairros, que começavam a serem loteados. Os bairros, no início foram feitos para serem ocupados pelas elites, pelo alto preço dos loteamentos, surgia então o Higienópolis e os Campos Elíseos.
Os terrenos de alto padrão exigiram outro tipo de investimento, o fornecimento de água encanada e esgoto. Em 1878, os mesmos que investiram nos novos bairros, formam a Companhia de Águas e Esgoto Cantareira. A modernidade e a poluição vão de mão dadas. O esgoto era todo despejado nos rios e córregos da cidade. E claro, o resultado foi uma crise sanitária. As várzeas do Tietê e do Pinheiros, principalmente, tornam-se extremamente poluídas e várias epidemias começam a eclodir.
A questão sanitarista, somada ao empecilho que os rios representavam para a expansão da cidade, que já havia extrapolado a região central e começava a crescer em direção as áreas do Tietê e do Pinheiros, levou ao início da canalização dos rios paulistas. O Vale do Anhangabaú passa a só ter "vale" no nome, é tomado de concreto e o rio que antes existia embaixo do Viaduto do Chá desaparece da vista e se torna subterrâneo. A Ladeira do Porto Geral passa a ser apenas uma ladeira, sem fornecer acesso a nenhum rio. O parque Dom Pedro II, antes com a vista do Tamanduateí, por ser localizado às suas margens, passa a ter visão de um canal, com a canalização do rio em 1912.
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Vista da região do Porto Geral, autor desconhecido, foto datada de 1862. Fonte |
E é claro, que a canalização de diversos afluentes do Tietê não foi onde pararam. Os argumentos dos sanitaristas convenceram a população e o governo. Mas o mais inusitado de toda essa história é o modo como foi realizado a retificação do Tietê e do Pinheiros. A Companhia de Melhoramentos do Rio Tietê ficou responsável pela execução da obra e o início da transformação do gigante paulista em como nós o conhecemos atualmente, quando ele passa pela capital.
Foi dada a concessão do rio a empresa no início dos anos de 1920. Precisava-se então delimitar o que era o rio. Não é simplesmente o local por onde passam as águas, mas também a área de cheia. E na época, a população mais pobre que morava na várzea do rio era também a mais afetada pelo esgoto e as diversas doenças que foram causadas por todos os resíduos despejados nas águas do Tietê. Para o início das obras, precisava ser feita a desapropriação das terras, e muitos não queriam vender ou queriam vender por preços altos. A Companhia então encontrou a solução.
Em 1929, aconteceu a maior enchente da história da cidade de São Paulo. O que não se sabia até a publicação do trabalho de Odette Carvalho de Lima Seabra, intitulado "Os Meandros dos Rios nos Meandros do Poder" era que, na verdade, a enchente foi provocada. Na época, a antiga Light era responsável pela Represa Cantareira. Antes da enchente, houve uma enorme chuva, mas segundo a pesquisa da professora Odette, o volume de água não seria suficiente para causar a enchente. Odette descobriu então que, na verdade, a Light abriu as compotas da represa e houve a inundação.
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Enchente em São Paulo em 1929, autor desconhecido. Fonte |
O objetivo da Companhia de encontrar os limites do rio foi cumprido então, e ainda por cima, a empresa pôde comprar várias propriedades a preços baixíssimos.
A retificação do rio então, é iniciada. O Tietê e o Pinheiros são rios de planície, por isso serpenteavam ao longo do seu trajeto. Com a obra, os rios tornam-se um único canal. Começa então, a morte do rio. Ou melhor, dos rios.
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Rio Pinheiros atualmente. Fonte |
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Rio Pinheiros antes da retificação. Fonte |
Com a chegada do automóvel do Brasil, a elite paulistana passa a querer com que sua cidade vire a capital latina dos carros. Uma São Paulo lotada de avenidas largas, viadutos, essa era a prioridade do transporte. Nessa mesma época Francisco Prestes Maia, engenheiro, começa a bolar o seu plano de construção de uma cidade com Avenidas Radiais Concêntricas. Inspirado em cidades como Viena (Áustria), Paris (França) e Moscou (Rússia), Prestes Maia queria colocar as mesmas bases de transporte em São Paulo, porém, pulando etapas. As cidades anteriormente mencionadas, tem o plano de avenidas, mas junto com a construção das mesmas, construiu-se também um anel ferroviário e hidroviário. Porém, o engenheiro ignorou esses mecanismos e deu prioridade aos carros.
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Plano de avenidas de Paris. Fonte |
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Plano de avenidas de São Paulo. Fonte |
Os planos de Prestes Maia se concretizaram quando ele se tornou prefeito da cidade em 1938. Para construir o seu plano de avenidas, ele se usa dos fundos de vales dos rios e córregos, por serem áreas de pouco valor imobiliário, ou seja, mais fáceis de serem desapropriadas. Surgem então, as principais avenidas de São Paulo, como a Avenida do Estado, a Avenida Nove de Julho e a Avenida Vinte e Três de Maio. Consequentemente, o carro ganhou definitivamente o seu espaço.
Diversos rios e córregos, submergidos, correndo na escuridão, embaixo de nós, nas ruas. Se tornando então, sujos, repletos de esgoto. As medidas de Prestes Maia tornam-se modelo e diversos cursos de água são transformados em subterrâneos.
Contudo, o rio pode até ter sido escondido, mas ele ainda existe. E quando chove, ele busca o seu espaço. Por isso sofremos tanto com enchentes, a enchente paulistana foi inventada, é uma das centenas de consequências da modernidade promovida por Prestes Maia, e tantos outros, que quando se depararam com a natureza desafiando o progresso, tentaram sufocá-la, mas falharam.
Fontes: Os Meandros dos Rios nos Meandros do Poder, Odette Carvalho, Documentário Entre Rios.
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