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Massacre do Carandiru: 25 anos de impunidade

Por Amanda Leite

Preso segura a Declaração dos Direitos Humanos dois dias depois do massacre. Fonte: Luis Novaes/Folha de S.Paulo
Na segunda, dia 2 de outubro, o “Massacre do Carandiru”, como ficou conhecido o episódio, completou 25 anos. Construído a partir de histórias mal explicadas, crimes impunes e uma tentativa de genocídio, como apontam alguns especialistas, o Massacre do Carandiru teve um total de 111 presos mortos (embora os sobreviventes afirmem que o número ultrapassa os 200) e nenhum policial punido: um evento de violência sem tamanho.

Foi uma carnificina aquele dia, eu comparo o que aconteceu com Auschwitz [campo de concentração nazista] e outras tragédias que eu via só em filme ou livro”, contou o sobrevivente Sidney Sales ao El País. Por volta das 15h, cerca de três horas antes da carnificina iniciar, o clima era de alegria: estava próximo de acabar mais um campeonato de futebol no pátio. Enquanto isso, corriam rumores de uma briga entre dois líderes, Barba e Coelho, no segundo andar, quando um dos envolvidos se machucou seriamente: “Ele tinha muitos companheiros, e [a penitenciária] deixou ele lá, sangrando no chão. Aí começou a revolta”. Sales afirma, entretanto, que acontecimentos assim, como brigas e rebeliões, eram normais: “Eu já tinha participado de outras duas na Casa de Detenção, então sem novidade”.

De acordo com o Coronel Ubiratan Guimarães, que comandou a invasão da PM no presídio, a ação foi tomada para controlar a revolta que se iniciava – o que, de acordo com os sobreviventes, também era normal. Sales também conta que, à medida que as tropas adentravam, os presos subiam para os andares superiores: Eles diziam que a polícia não estava usando balas de borracha”, afirma. O homem, que na época tinha 24 anos, correu para sua cela, a 504-E.

Presos levados nus para o pátio. Fonte: Instituto Vladimir Herzog
“Tinha 10 pessoas lá dentro, todas agachadas rezando cada um pro seu deus. Eu não fiz diferente. Me ajoelhei e comecei a orar o salmo 91”, lembra. Quando um dos policiais alcançou o quinto andar e, pela portinhola de abertura da porta, matou um dos presos, o pânico se instaurou: “Estevão morreu do meu lado sem dar um grito, foi morte instantânea. Começou a se formar uma poça de sangue”, conta. O policial perguntou quantos detentos ainda estavam no local. Assustados, se calaram. “Ele disse que ia atirar de novo se ninguém respondesse, e foi aí que eu falei que éramos em 10 lá dentro”, diz.

O policial ordenou todos a saírem, se despirem e caminharem para o pátio. Neste momento, Sales descreve o amontoado de corpos que estiravam no chão, “alguns vivos, gritando e gemendo.” Enquanto descia as escadas, ouviu alguém lhe chamar: “Era um amigo meu. Ele havia sido baleado no rosto e estava totalmente deformado. Não tive coragem de parar para ajudar nem de olhar para ele, estava horrível, um olho havia sido arrancado”.

No caminho, ele ainda assistiu outra atrocidade. Os policias, separados em duas fileiras, batiam nos presos, que iam em direção a um elevador, quebrado devido a rebelião: “Os policiais abriram as portas, e de cada 10 presos que passavam eles empurravam dois ou três no fosso. Imagina, uma queda de cinco andares... Quando vi que estavam fazendo isso mudei meu lugar na fila pra ficar mais perto da escada e escapar do vão”, conta.

O "rio de sangue". Fonte: Revista Superinteressante

Após o massacre, alguns dos sobreviventes foram escalados para retirarem os corpos das celas e levarem ao pátio para então serem enviados ao Instituto Médico Legal (IML). Entre os escolhidos, estava Sales: "Carreguei uns 25 corpos. A gente tentava ignorar os gritos daqueles que estavam vivos. Colocávamos presos mortos em cima deles para ver se paravam de gemer". Ele ainda desempenhava sua função, quando encontrou um presidiário, que cumpria a mesma tarefa que a sua, morto no chão: "Aí eu pensei: ‘pronto, estão fazendo queima de arquivo’”, diz. Ele correu e subiu até o quarto andar. “Vi aquela poça de sangue no corredor, escorrendo pelos degraus e fiquei com medo de colocar o pé”, explica. O HIV, comum dentro do presídio, se disseminou ainda mais com o massacre. O “rio de sangue” foi causado pela quebra dos encanamentos, levando água para todo o local, que logo se misturou por entre os mortos. “Aí eu desviei do quarto andar e subi pro quinto. Quando cheguei lá me deparei com três policiais”, diz. 

“Vai acontecer um milagre na sua vida”, afirmou um dos policiais. “Estou com esse molho de chaves do andar todo aqui. Vou escolher uma. Se bater no cadeado, girar e a porta abrir, você vive. Se não, vou te executar. Você morre aqui mesmo no corredor”. Sales fechou os olhos e rezou. Antes que pudesse terminar a prece, um barulho ecoou: o cadeado da cela 504-E se abriu. “Aí eu entrei. O policial bateu a porta nas minhas costas e eu fiquei lá até o dia seguinte. Tinha umas 40 pessoas lá dentro.”

Coronel Ubiratan prestando depoimento para a Polícia Militar. Em 2006, ele foi assassinado. Fonte: Luis Carlos Murauskas/Folha de S.Paulo
Até hoje, os responsáveis pelo Massacre não foram punidos: embora tenham sido condenados a 632 anos de prisão e a perícia tenha confirmado que a maioria dos 515 tiros disparados tenham sido direcionados ao tórax e à cabeça (um sinal claro da tentativa de matar o maior número possível), os policiais e o Coronel Ubiratan nunca foram julgados. Hoje, 25 anos depois, resta a lembrança, a revolta e a certeza de que o sistema carcerário brasileiro está, há tempos, saturado e inviável.

QUAIS OS NÚMEROS DO MASSACRE?

Fonte: Brasil de Fato

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