Os ataques com ácido e a violência de gênero
Por Carolina Avólio
“Meu nome é Farida, tenho 40 anos e vivo em Bangladesh. Meu marido era viciado em drogas e em jogos. Ele perdeu tanto dinheiro que foi forçado a vender nossa casa. Eu estava furiosa e falei que iria deixá-lo. Então naquela noite, enquanto eu dormia, ele jogou ácido em mim e trancou a porta. Meu corpo todo começou a queimar e eu estava gritando tão alto que os vizinhos vieram correndo”.
Infelizmente, a história de Farida não é um acontecimento único. Os ataques com ácido contra mulheres têm aumentado em uma proporção impressionante, ainda mais no Oriente Médio – Índia, Bangladesh, Paquistão, Irã, Camboja, Nepal e Afeganistão registram alguns dos índices mais altos do mundo. Longe de ser um problema regional, esse tipo de violência também vem crescendo na Uganda, no Reino Unido (único local onde a maioria das vítimas são homens), na Itália e na Colômbia, país no qual a questão já é tratada como um problema de saúde pública. Segundo estimativas da ASTI (Acid Survivors Trust International), organização que ajuda pessoas que sofrem desse tipo de violência, são 1.500 vítimas todos os anos, sendo que 80% delas são mulheres, e a maior parte tem menos de 25 anos.
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Munira Asef, paquistanesa, 23 anos, foi queimada com ácido após recusar um pedido de casamento. Passou por sete cirurgias até agora. (Foto: Emilio Morenatti)
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A misoginia por trás da violência
A maioria das vítimas desses ataques teve sua vida transformada para sempre por rejeitar pedidos de casamento, levantar suspeitas de adultério, causar ciúmes entre as esposas de um mesmo marido, questionar a autoridade patriarcal, reagir a insinuações sexuais, pedir divórcio etc. A alteração do papel das mulheres na sociedade oriental – outrora tidas como objeto doméstico e descartável, agora crescendo no mundo acadêmico e no mercado de trabalho – também faz com que os homens se sintam "desafiados".
Como se não bastasse o trauma ao qual foram submetidas por terem seus rostos desfigurados, muitas não relatam o ocorrido por medo de perseguição e reincidência. Foi o que aconteceu com uma mulher indiana, cuja identidade foi mantida sob sigilo, depois de sofrer um estupro coletivo. Logo após a violência sexual, os mesmos agressores a atacaram com ácido sulfúrico. Depois de a vítima prestar queixas, ela foi atacada mais duas vezes pelas mesmas pessoas e na terceira vez foi forçada a beber ácido enquanto fazia uma viagem de trem com a sua filha. Ambos os homens foram soltos mediante o pagamento de fiança.
As falhas do Estado
A impunidade é apenas um dos problemas adjacentes dos trágicos ataques. Um dos motivos pelo crime ser tão comum é justamente a facilidade com que a substância pode ser adquirida, ainda mais em zonas de indústrias de joias, borracha e algodão – as garrafas de ácido são vendidas na Índia por apenas US$0,33 e sem receita. Uma das vantagens de escolher o ácido como arma do crime é que as leis são muito mais brandas em relação a esse tipo de ataque do que em relação ao esfaqueamento, por exemplo. Bangladesh, o primeiro país a adotar leis para limitar o acesso aos produtos e punições mais severas, incluindo a pena de morte, obteve uma redução de quase 75% no número de casos entre 2002 e 2012.
Discriminação
Quando o ácido entra em contato com a pele, é uma questão de segundos até que a epiderme, os ossos e até mesmos os órgãos internos sejam afetados. Pode causar cegueira e desfiguração para o resto da vida, não importa o número de intervenções cirúrgicas. Porém, as cicatrizes psicológicas são as que mais afetam as vítimas. Shirin Juwaley, vítima de ataque de ácido cometido pelo marido após pedir o divórcio, relatou que “é muito menos tangível, mas a discriminação de amigos, familiares e vizinhos dói mais”. Muitas vítimas são frequentemente humilhadas em público e recorrem à exclusão social como forma de proteção. Afastadas do convívio em sociedade e do mercado de trabalho, ficam totalmente marginalizadas. “Minha vida deu um giro de 180 graus. De profissional de sucesso, me converti em uma rejeitada social sem recursos próprios nem família”, conta Vinitar Parniker, de 26 anos, vítima também do próprio marido.
As ONGs desempenham um papel fundamental no auxílio à reintegração, criando centros de trabalho e fornecendo atendimento psicológico. Não são raras as mulheres que cometem suicídio após serem notificadas que seus agressores foram livrados das acusações e continuam livres.
Dando a volta por cima
Monica Singh, que sofreu um ataque depois de recusar um pedido de casamento feito por um amigo, criou uma fundação que apoia vítimas dessa violência. Em parceria com uma ONG colombiana, elaborou uma HQ que transforma mulheres que tiveram seus rostos desfigurados devido ao ataque com ácido em heroínas. A primeira edição narra a história de Priya, uma garota que sobrevive a um estupro, é culpada pela violência e acaba sendo expulsa de casa por ter "envergonhado seus pais". Obrigada a vagar sozinha, ela ganha um tigre e superpoderes e passa a combater os estupradores da Índia. Já o segundo volume conta a história de Anjali, que luta contra um rei demônio e cuspidor de ácido chamado Ahankar. (Clique aqui para ler a HQ completa e em português)
Já Reshma Bano, indiana e sobrevivente do mesmo tipo de ataque, viu sua vida mudar quando foi chamada para desfilar na Semana de Moda de Nova York. Ao som de aplausos e gritos de “linda” e “vitoriosa”, ela cruzou a passarela emocionada e com um sorriso no rosto. Bano espera que a sua estreia no mundo da moda possa levantar atenção à causa. "Eu quero que as pessoas olhem para as sobreviventes de ataques de ácido como pessoas normais. É absolutamente traumático ser uma garota com o rosto arruinado. Na Índia é tão fácil comprar um ácido quanto comprar um batom. Este é o crime mais fácil de cometer... Não é como levar um tiro ou ser esfaqueada. Não há sangue, mas há trauma que se leva para o resto da vida”, contou aos jornalistas um pouco antes de correr a Times Square, entusiasmada em sua primeira viagem internacional.
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Reshma Bano desfilando na Semana de Moda de Nova York em 5 de setembro. (Foto: AFP) |
Para conhecer o trabalho da ASTI, associação que dá suporte a vítimas desse tipo de violência, clique aqui.
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