Intolerância religiosa: o que está acontecendo com as religiões de matriz afro no Rio de Janeiro
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Foto: Google imagens/reprodução. Templo dos Orixás Antônio Baiano |
Acontecimentos recentes
A primeira quinzena de setembro de 2017 foi marcada por uma série de atrocidades na cidade do Rio de Janeiro, foram oito queixas recebidas pela Secretaria de Direitos Humanos que alegam violações de terreiros de Candomblé. Dessas oito, sete já foram confirmadas. Entretanto, sabe-se que esse número é muito menor do que a realidade.
O motivo principal para a repercussão desses acontecimentos foi o ocorrido na Baixada Fluminense, em Nova Iguaçu: sete homens armados entraram em um terreiro, obrigaram a mãe de santo a destruir todas as imagens ali presentes e arrebentaram todas as guias dos filhos de santo (colares que os fiéis usam, que representam sua devoção e proteção). Um vídeo da destruição das imagens foi postado pelos criminosos em redes sociais.
Após o ocorrido, a mãe de santo recorreu à Secretaria de Direitos Humanos para que tivesse apoio da polícia para voltar ao terreiro e recuperar seus pertences. Por medida de segurança, sua identidade e a data da recuperação estão sendo mantidas em segredo.
Testemunhas do crime, em entrevista para a CBN, confirmaram todas as alegações e ainda afirmaram que os bandidos urinaram nos artefatos quebrados, dizendo que não permitiriam aquele tipo de "bruxaria" na comunidade. Na filmagem é possível ouvir:
"Quebra tudo, quebra tudo! Apaga as velas, porque o sangue de Jesus tem poder! Arrebenta as guias todas! Todo o mal tem que ser desfeito, em nome de Jesus! Quebra tudo porque a senhora é quem é o 'demônio-chefe'! É a senhora quem patrocina essa cachorrada! Quebra tudo! Arrebenta as guias todas, derrama, quero que quebre as guias todas!"
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Still do vídeo em que a mãe de santo é obrigada a destruir seu terreiro. |
Em outro ataque registrado pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa no mesmo bairro e neste mesmo período, um pai de santo também foi obrigado a destruir seu próprio terreiro. Enquanto ele o fazia, era ameaçado de morte por bandidos que carregavam um taco de beisebol com a palavra "diálogo" escrita nele e diziam para que não voltasse a abrir um terreiro na favela. Eles gritam as ameaças, nomeando uma facção criminosa da região e usando termos religiosos comumente ouvidos em cultos evangélicos.
"É só um diálogo que eu tô tendo com vocês, na próxima vez eu mato! Safadeza, pilantragem! Primeiramente é Jesus! Quando vocês forem bater cabeça aí na casinha do cachorro, vocês primeiro pedem licença a Jesus! Vocês não sabem que o 'mano' não quer macumba aqui? Tá peitando por quê? Por que a gente tirou a boca dali? Arrebenta tudo! Eu sou da honra e glória de Jesus!"
Para o presidente da Comissão, Ivanir dos Santos, as ações não são isoladas e representam uma tentativa de aumento no domínio que certos grupos exercem nas comunidades, por meio de líderes religiosos mal intencionados.
"Essa é uma coisa muito bem orquestrada e pensada até de ocupação de espaço geográfico. É sinal de que tem algumas más lideranças religiosas metidas nisso. Porque o cidadão em si ele não acorda, da noite pro dia, tem uma miragem, 'ah, Jesus mandou, fui lá e fiz'. Não é isso que está acontecendo. Eles estão falando com uma retórica, com um discurso muito bem construído. Então alguém botou isso na cabeça dessas pessoas.", disse Ivanir.
No mesmo período de setembro, foram anunciados pela CBN dados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que revelam que desde 2012 nenhuma condenação foi feita por crimes de intolerância religiosa.
História
Um levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas revelou que mesmo sendo o segundo estado menos religioso do país, o Rio de Janeiro representa a maior proporção de fiéis de religiões afro-brasileiras de toda a nação, sendo esse número 1,61% em contraponto ao Brasil que possui uma relação de 0,35% apenas.
O caso recente mais famoso foi um atentado à vida da menina Kailane Campos, de 11 anos, no ano de 2015. Enquanto saía de um culto, vestida de branco, com a avó, ela foi apedrejada por pessoas que gritavam "Vai para o inferno!", "Diabo!", "Jesus está voltando!", enquanto seguravam suas Bíblias. O estado do Rio é o quinto com maior representatividade de religiões evangélicas tradicionais.
No entanto, é de se saber que essas violências não são recentes, já que o Candomblé e a Umbanda são religiões de origem africana e, num país racista como o nosso, não é de se espantar que essas coisas aconteçam. Na época da colonização, os escravos se viram obrigados a esconder seus cultos e sua religião totalmente, até que iniciou-se um processo de sincretismo religioso, que hoje representa a correspondência de santos dessas religiões com a católica, que era a religião oficial dos portugueses e imposta a todos os índios e escravos.
Apesar disso, as raízes africanas nunca se perderam, como nos costumes gastronômicos, musicais e de vestimenta. E, por isso, para os intolerantes, é muito fácil avistar seus alvos, como a menina Kailane, que estava vestida com roupas tradicionais da religião e foi atacada.
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Foto: Google imagens/reprodução. Sincretismo religioso. |
Apesar disso, as raízes africanas nunca se perderam, como nos costumes gastronômicos, musicais e de vestimenta. E, por isso, para os intolerantes, é muito fácil avistar seus alvos, como a menina Kailane, que estava vestida com roupas tradicionais da religião e foi atacada.
Em vista de todos os acontecimentos desde a escravidão, foi necessário que se redigisse uma lei para garantir a segurança dessas pessoas. Em 1946, o escritor baiano Jorge Amado (autor de "Capitães da Areia") foi o criador da Lei de liberdade de culto escrita na carta magna do mesmo ano, que foi anexada ao Art 5º da constituição da republica de 1988.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Mais uma vez, atentados às vidas de milhares de pessoas negras, ou que seguem religiões de descendência africana, são feitos regularmente e a lei sozinha é incapaz de assegurar a proteção dessas pessoas em detrimento de uma invencibilidade daqueles que pregam a violência em nome das religiões de origem europeia.
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