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As crianças que nasceram e viveram nos porões da ditadura

Por Amanda Leite
 
Crianças fichadas pelo DOPS durante a ditadura. Zuleide, Luis Carlos e Ernesto, respectivamente, foram presos e levados para fora do Brasil como terroristas. Fonte: O Globo
 
Durante os 21 anos que vivemos sob o sanguinário governo militar, as atrocidades cometidas contra a população alcançaram os mais violentos patamares. Embora ainda pouco divulgados, os depoimentos das vítimas que foram torturadas entre os anos 1964 e 1985 percorrem o país afim de escancarar a verdade da época e buscar por justiça. 

É nesse contexto que conhecemos testemunhos de crianças, como Zuleide Aparecida do Nascimento, que foi presa e fichada pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), em 1970.  A garota, que na época tinha apenas 4 anos, foi levada pelos militares junto com seu irmão, Ernesto, de 2 anos, e seus primos Luis Carlos e Samuel, que tinham 6 e 8 anos respectivamente. Depois de serem separados de seus pais, que já haviam sido presos e eram torturados, as quatro crianças, graças ao Ato Institucional nº 13, foram enviadas à Argélia, por serem consideradas "inconvenientes, nocivas e perigosas para a segurança nacional", chegando a ser classificadas como terroristas.

"Eu acho um absurdo, desumano com certeza. Criança? Terrorista? A gente nem sabia o que estava acontecendo!", disse Zuleide em entrevista à Record

A menina, antes de ser enviada para fora do Brasil, foi instalada no Juizado de Menores, junto dos outros meninos, onde teve seus longos cabelos cacheados cortados à força: "Aquilo foi uma violência muito forte para mim", ela conta ao Jornal O Globo. Os quatro foram então mandados para a Argélia, junto de mais 40 presos políticos, e futuramente enviados para Cuba, graças a uma negociação da esquerda com o governo militar, que envolveu o sequestro do então embaixador alemão Ehrenfried von Holleben. Zuleide só pôde voltar para o Brasil 16 anos depois. "Sou uma pessoa sem identidade. Fui alfabetizada em espanhol. Meus documentos foram cassados, nem sei que dia nasci. Me sinto mais cubana do que brasileira."  

Amelinha, seu marido César e seus filhos Edson e Janaína. Fonte: Rede Record

Foi o caso também da família de Maria Amélia Teles, que relembra, em entrevista para a UOL, o dia que seus filhos, Edson e Janaína Telles, de 5 e 4 anos, respectivamente, foram pegos pelo temido Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. As crianças foram levadas até a sala onde a mãe estava sendo torturada: "Aquilo foi muito difícil para mim, eu estava suja de sangue, urina e vômito. Eles queriam me abraçar, mas não tinha como", conta. O filho, Edson, lembra o momento em que viu a mãe sendo torturada, na cadeira do dragão: "Ela me chamava 'Edson! Edson!'. Era a voz dela, mas quando olhei, não reconheci seu rosto. Ela já estava totalmente desfigurada".

Junto de Edson e Janaína, a polícia levou também a tia das crianças, Criméia Almeida, grávida de 8 meses. Na prisão, ela e seu filho, João Carlos Grabois, ou simplesmente Joca, foram torturados. Criméia conta que, toda vez ouvia as chaves do carcereiro, anunciando sua chegada, o bebê tinha soluços dentro da barriga: "Meu filho tem soluços até hoje, quando fica muito tenso", conta. Joca foi torturado antes mesmo de nascer: sua mãe levou diversos choques elétricos na barriga. Criméia deu a luz no Hospital do Exército de Brasília, mas foi logo separada de seu filho, que ficou preso por dois meses. 

Rose e seu filho Kaká, em 1974. Fonte: Portal Brasil

"Eles são tão covardes! Tão assassinos!", desabafou Rose Nogueira, para a Record. A jornalista descreveu o confronto que teve com o delegado Fleury, que queria prendê-la junto de seu filho recém-nascido: "Eu falei: não vou com meu filho! Vocês não vão por mão no meu filho!", contou em entrevista. "Ele disse que podia usar da violência e respondi que podia, era o máximo que ele podia fazer. Tão forte é a maternidade que uma hora ele simplesmente baixou os olhos."

Seu filho, Kaká, foi enviado para casa de parentes. Embora não tenha vivido nos porões da ditadura, ele não gosta de falar sobre o assunto: "É muito complicado para ele. A gente não consegue conversar tanto. Toda vez a gente tenta falar um pouquinho, acrescentando ao longo da vida".

As marcas que a repressão deixou na sociedade são profundas e não devem ser esquecidas. Hoje, os sobreviventes dos anos de chumbo divulgam a violência da época e lutam para que o país nunca mais viva nada tão sombrio como a Ditadura Militar.  


       

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