Um Novo Começo?
Por Enzo Kfouri
Nessas últimas semanas,
mesmo sem a atenção devida, a mídia tem falado sobre a retirada do líder Robert
Mugabe e a crise política que assombra o Zimbábue, país com pouco mais de 16
milhões de habitantes localizado no sul do continente africano.
Envolto em uma crise
econômica grave, a nação com a maior inflação do mundo tenta se reerguer
politicamente, procurando deixar de lado os fantasmas do passado colonial.
No poder há quase quatro
décadas, Mugabe estava aguentando a pressão popular e as manifestações quando
foi forçado a renunciar por conta da intervenção militar, que no último dia 15 levou
as forças armadas a tomar as ruas da capital Harare e assumiram o controle dos
edifícios governamentais e os meios de comunicação.
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Ex- presidente do Zimbábue Robert Mugabe. O chefe de estado que estava há 37 anos no poder renunciou no último dia 21 por pressão das forças armadas. Fonte: Philiman Bulawayo/Reuters |
A renúncia do político que
governou desde 1980 se deu no dia 21, quase uma semana depois da ocupação dos
militares, através de uma carta que não indicou nenhum sucessor. O país
africano atravessa um período muito frágil em relação à sua economia, porém estima-se
que todo o conflito político tenha se intensificado após Mugabe ter destituído,
no último dia 6, o então vice-presidente Emmerson Mnangagwa, na época provável
sucessor da presidência nas eleições de 2018, por influência da primeira dama,
Grace Mugabe, com quem competia para suceder o chefe de estado.
Ao contrariar seu partido, a
União Nacional Africana do Zimbábue – Frente Patriótica (ZANU-PF), Mugabe
acabou decretando o fim de seu longo governo, uma vez que a união política e
Mnangagwa acabaram por se aliar com as forças armadas e com a população que
protestava contra o governante para retirar ele e sua mulher do poder. Contudo,
é importante se ter em mente que os problemas políticos, econômicos e sociais
na antiga Rodésia não são atuais, e sim consequências de um passado longo de
exploração proveniente do neocolonialismo.
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Veículo blindado em Harare, na manhã de 15 de novembro próximo à sede da presidência. Fonte: Tsvangirayi Mukwazhi/AP |
Colonização
e Independência
Guerra Civil (1965-1979)
Após o evento de 1965, mesmo sem o reconhecimento internacional, a minoria branca assume o poder para lidar com as guerrilhas africanas de ideologias esquerdistas, o que dá início a uma guerra civil sangrenta que dura mais 14 anos (1965-1979). É durante esse período que surgem duas uniões fortes: a já mencionada ZANU-PF, liderada por Mugabe e a ZAPU (União do Povo Africano do Zimbábue), comandada por Joshua Nkomo.
Colônia britânica desde o
final do século XIX, o Zimbábue possuía uma elite branca muito presente que
tomava as decisões e detinha o poder. Era normal nas colônias inglesas todo o
sistema de policiamento e exército serem propriamente subordinados à metrópole,
o que dificultava a autonomia desses territórios. Entretanto, o caso da Rodésia
do Sul, como era chamada na época, era totalmente diferente, pois encontrava-se
estruturada de outra maneira, uma vez que a elite local que comandava esses
segmentos.
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Mapa da região sul da áfrica, destacando a localização do Zimbábue e da Zâmbia, ex-Ródésia do Sul e Rodésia do Norte, respectivamente. Fonte: Arte UOL |
Em 1964, após negociações, o
Reino Unido concede à Rodésia do Norte, atual Zâmbia, a independência. Todavia, isso não ocorre com a Rodésia do Sul pelo fato de os líderes locais não concordarem com os termos ingleses que
impediam que o governo novo fosse eleito à base do sufrágio universal.
Desse modo, um ano depois, o
primeiro-ministro local acaba declarando unilateralmente a independência em 11
de novembro de 1965, feito que não ocorria desde a independência americana,
isto é, desde 4 de julho de 1776. No
pronunciamento também promulgou uma constituição através da qual o país passaria
a adotar o nome de República da Rodésia. A declaração não foi reconhecida pelo
Reino Unido e nem pela ONU, que só consideraram o território definitivamente
independente em 1980, 15 anos depois.
Guerra Civil (1965-1979)
Após o evento de 1965, mesmo sem o reconhecimento internacional, a minoria branca assume o poder para lidar com as guerrilhas africanas de ideologias esquerdistas, o que dá início a uma guerra civil sangrenta que dura mais 14 anos (1965-1979). É durante esse período que surgem duas uniões fortes: a já mencionada ZANU-PF, liderada por Mugabe e a ZAPU (União do Povo Africano do Zimbábue), comandada por Joshua Nkomo.
Em 1979, através do acordo
de Lancaster House, apoiado por diversas potências europeias e pelos EUA, a paz
finalmente é instaurada. Com o final da guerra o território finalmente consegue
implementar o sufrágio universal e acabar com o domínio da minoria branca,
proclamando-se então a República do Zimbábue, liderada pelo primeiro-ministro
Robert Mugabe, eleito democraticamente pela maioria.
Governo
Mugabe (1980-2017)
A princípio, Mugabe foi
mundialmente elogiado por sua postura supostamente conciliadora, mas a história
mostraria sua verdadeira face. Ainda em seus primeiros anos de governo, o
político ficou conhecido por perseguir a minoria branca, forçando-a a fugir do
país. O Mugabe da televisão, dos discursos de reconciliação racial não se
assemelhava em nada com o real.
Em 1982, Mugabe passa a
comandar o país sozinho, rompendo a coligação de Unidade Nacional de dois anos
com Joshua Nkomo, o que gera um grande conflito entre as duas principais etnias
da nação: os shonas (71% da população e etnia de Mugabe) e os ndbeles (29% da
população). Foi nesse período que as forças armadas leais ao presidente
cometeram as maiores atrocidades, deixando 20.000 civis mortos. Cinco anos
depois, os dois lados se acertam e o então chefe de estado, tentando contentar
a maioria, nomeia seu antigo rival vice-presidente. Após
isso, o presidente centralizou as políticas econômicas na produção de cereais e
a partir de 2000, com a reforma agrária, as condições pioraram brutalmente.
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Apoiadores de Emmerson Mnangagwa comemoram renúncia de Mugabe. Fonte: Ben Curtis/AP |
Por conta da medida, a
agricultura, “espinha dorsal” do país, entrou em queda livre, com a
produtividade atingindo níveis miseráveis sem precedentes na história do país.
O
que se iniciou como um processo de nacionalização forçada das propriedades
agrícolas nas mãos da população branca para as redistribuir aos negros, sob o
discurso de haver uma “necessidade de inverter os desequilíbrios econômicos”,
transformou-se em uma política que beneficiava próprio presidente, sua família
e a elite partidária, deixando milhares de trabalhadores negros sem trabalho e
moradia.
Rapidamente o Zimbábue
deixou de ser o celeiro da África, como era reconhecido por sua produção
abundante, para se tornar uma nação à beira da miséria extrema com índices
altos de fome. Assim,
desde que chegou ao poder em 1980, o político viveu por décadas de maneira
indiferente aos problemas locais. Enquanto a imprensa internacional reportava
as condições precárias da saúde e educação públicas, incluindo a qualidade de
vida, a elite política mandava no país.
Nas últimas décadas, a
inflação do país conquistou o infame posto de maior inflação do mundo. As
notas de bilhões e trilhões de dólares do Zimbábue tornaram-se fetiche de
colecionadores. A inflação chegou a tal
ponto que o país perdeu o controle sobre
sobre sua economia e se viu forçado a abrir mão de uma moeda nacional.
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Cédula de 100 bilhões de dólares do Zimbábue. Hoje é comum no país se fazer o uso de moedas estrangeiras. Fonte: AFP |
Com a deposição de Mugabe, o
povo do Zimbábue espera um futuro melhor para que possa se esquecer das últimas
décadas sombrias que degradaram a qualidade de vida no país. Espera-se com o
novo líder que as condições melhorem, mas o que esperar de um presidente do
mesmo partido que só tomou posse por conta de desentendimentos entre seu
antecessor e a elite política, cúmplice das tragédias humanitárias?
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirA verdade é que é muito difícil saber realmente para que lado torcer... é sempre uma disputa de PODER e, no meio do embate estamos nós, O POVO; "nem sempre perdendo nem sempre ganhando mas aprendendo a jogar"...
ResponderExcluirExatamente, Cleide! Pessoalmente acho muito difícil apontar se haverá de fato uma melhora no Zimbábue, assim como em todos os outros países que não se enquadram como "desenvolvidos". Isso porque as relações de poder são muito mais fortes para quem governa do que a aprovação do povo, que fica no meio de todo esse fogo cruzado, vivendo dia após dia.
ExcluirTexto muito abrangente. Quase uma aula de história do Zimbábue. Mas ficaram algumas dúvidas. Não entendi muito bem como foi o processo de independência das duas Rodésias. Parece que Corôa Britânica concedeu a independência a uma mas não concedeu a outra. Não ficou muito claro. Outra coisa que tive dificuldade de entender foi se a queda da economia do Zimbábue se deu por conta da reforma agrária ou outro fator que comprometeu a sua agricultura.
ResponderExcluirEntão, Maurício, vou esclarecer suas dúvidas! A respeito da independência foi exatamente isso o que aconteceu: a coroa britânica concedeu a independência à Rodésia do Norte, através de negociações, e não à Rodésia do Sul, pois não aceitava os termos impostos, que incluíam a impossibilidade do sufrágio universal. Sobre a segunda dúvida, a economia do Zimbábue piorou muito na gestão de Mugabe, mas o fato crucial foi a reforma agrária, que beneficiou somente o líder e seus entes próximos e diminuiu drasticamente a produção de cereais, principal atividade econômica do país.
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