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Mianmar: da "limpeza étnica" aos interesses econômicos

Por Larissa Coelho

Refugiados rohingya esperam para receber auxílio em Cox's Bazar, Bangladesh. Fonte: Cathal McNaughton / Reuters

Quando se trata de conflitos no Oriente Médio, África e Ásia é comum ouvir a explicação preponderante de que existem como consequência de um ódio irracional enraizado na cultura ou religião, pois tratam-se de "conflitos étnicos seculares".

Mianmar, de acordo com a versão oficial, plenamente adotada pela mídia, seria um desses casos. O país, localizado no sul da Ásia, vivencia uma "limpeza étnica", segundo a ONU. Cerca de 1 milhão de muçulmanos rohingyas vivem em Mianmar, país predominantemente budista. A maioria mora de maneira precária no estado de Rakhine, palco dos episódios recentes de violência.

Os rohingyas atualmente protagonizam uma fuga em massa de Mianmar para o país vizinho Bangladesh que vive uma crise humanitária com acampamentos de refugiados superlotados. Haveria pelo menos 650 mil rohingyas em Bangladesh. "A magnitude e a velocidade do fluxo [de refugiados] não tem precedentes em Bangladesh", afirma o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), relatando que "60% dos refugiados são crianças".

Quem são os rohingyas


Um grupo de refugiados Rohingya vindos de Mianmar para Bangladesh, descansam em sua nova área de refúgio na cidade de Kuala Langsa na província de Aceh. Fonte: AFP

Os rohingyas, um grupo étnico que pratica o islamismo, vivem no território de Mianmar há gerações e, no entanto, não fazem parte dos 135 grupos locais oficialmente reconhecidos. São proibidos de casar ou de viajar sem a permissão das autoridades e não têm o direito de possuir terras ou propriedades, além de serem vítimas de trabalho forçado, extorsão e restrições à liberdade de circulação.

Falam um dialeto particular e distindo dos idiomas falados no estado de Rakain, o Rhingya ou Ruaingga. Têm a cidadania negada pelo governo de Mianmar desde 1982, e por décadas vêm fugindo de perseguições - sobretudo para Bangladesh, Malásia, Índia, Nepal e EUA -, onde quase sempre enfrentam situações de vida precárias.

Desde que o país se tornou independente, os rohingyas têm sido vítimas de negligência e repressão. Nos últimos anos, com as mudanças políticas e sociais ocorridas no país, viram uma onda de violência voltar a emergir contra eles. Após ter sido governado por uma junta militar por mais de 50 anos, Mianmar vinha passando por uma democratização e por melhorias no campo social, que não atingiu o povo rohingya.

Como o conflito começou 


Refugiados Rohingya desembarcam de um barco no lado bengalês do rio Naf. Fonte: Masfiqur Sohan / Getty Images

Em 2012, violentos confrontos no país orquestrados por extremistas de maioria budista deixaram cerca de 200 mortos, centenas de casas e edificações muçulmanas destruídas e 100 mil desabrigados. Autoridades foram acusadas de não agir para defendê-los.

Em agosto desse ano, a violência explodiu novamente: o Exército lançou uma grande operação, após a rebelião do Arakan Rohingya Salvation Army (ARSA) contra cerca de 30 delegacias de polícia. Cerca de 500 pessoas morreram, em maior parte membros da minoria muçulmana, segundo o exército.

Para Zeid Ra'ad Al Hussein, o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, o tratamento que Mianmar dá à minoria muçulmana rohingya se assemelha a um "exemplo de limpeza étnica de manual".

Quase que por ironia, o governo de Mianmar é liderado de facto pela vencedora do Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, que se limitou a dar apoio ao Exército, garantindo que "as forças de segurança receberam instruções" para "evitar danos colaterais e que os civis inocentes fiquem feridos durante sua missão legítima de restaurar a ordem". Aung San Suu Kyi depende do poderoso movimento de monges nacionalistas, que consideram os muçulmanos uma ameaça para Mianmar.

A questão econômica 


Uma mulher rohingya segura um bebê que morreu quando o barco em que estavam virou logo antes de alcançar a margem do Golfo de Bengala em Bangladesh. Fonte: Zakir Hossain Chowdhury / Getty Images.

A compreensão das causas para o conflito em Mianmar depende de um olhar atento, não limitado às causas sociais e culturais, mas ampliado à movimentação política e econômica da região. Enquanto os olhares se direcionam para a situação como uma questão de conflitos étnicos, corporações veem nela um quadro favorável à expansão de seus domínios.

À medida que a crise do povo rohingya é amplamente criticada por diversos países, a China ainda mantém relações com o governo de Mianmar, em meio a uma estratégia comercial, energética e de infraestruturas chinesa no Sudeste Asiático. Os ataques contra os rohingya têm ocorrido em um local de desmatamentos de terra, próximo de terminais de de petróleo e gás, pelos quais os combustíveis são transportados até a China.

Mianmar foi considerada a "última fronteira asiática" para o processo de expansão capitalista na região. Começou a abrir sua economia na década de 1990, mas só concluiu o processo depois de reformas realizadas em 2006, tornando-se propício para corporações de mineração e companhias de petróleo e gás.

Em 2012, uma mudança na lei que regula a aquisição de terras teve como consequência um vasto processo de expropriação das mesmas para o favorecimento de investidores estrangeiros que atingiu milhões de habitantes, independentemente de sua religião.

Por meio dessa perspectiva, o conflito de Mianmar ultrapassa as barreiras das diferenças étnicas e religiosas e se torna um meio de liberar a obtenção de terras e recursos para as corporações. Dessa forma o apelo por diálogos e acordos entre as partes conflitantes mira apenas no conflito e esquece de questionar as causas econômicas e políticas.

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